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Essas Pessoas na Sala de Jantar

Curadoria de Raphael Fonseca

Casa Museu Eva Klabin
Rio de Janeiro, 2023

A primeira vez que pude visitar a Casa Museu Eva Klabin foi em algum momento entre os anos de 2004 e 2007, já na metade da graduação em História da Arte, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Naquele momento muito interessado no estudo das chamadas tradições clássicas, entrar naquele espaço foi como entrar em um portal no tempo; ainda não havia visto tamanha reunião de obras de contextos tão diferentes — do Egito Antigo à produção de pintura francesa do século XX, passando por retratos ingleses do século XVIII e imagens feitas pelos povos originários do território que chamamos por Peru. A articulação entre colecionismo e esfera doméstica certamente saltava aos olhos. Ao sair da casa um dia habitada por Eva Klabin, porém, o choque com a “cidade-maravilha-purgatório-da-beleza-e-do-caos” se dava de maneira estésica: o calor de quarenta graus, o barulho dos carros que quase voam pelas vias de asfalto, a poluição já histórica da Lagoa Rodrigo de Freitas e uma paisagem por vezes erma que costuma nos colocar entre o gozo edênico e o medo do espaço público vazio. Logo à frente desta casa há um ponto de ônibus; atualmente o único ônibus que para ali é o 473, que conecta Copacabana com São Januário, na Zona Norte. A dez minutos da casa, ao se tomar a Avenida Henrique Dodsworth chegamos à estação de metrô Cantagalo. Daí, em cerca de uma hora, pode-se chegar não apenas ao bairro da Tijuca, como a áreas geralmente enxergadas como “suburbanas” — eis o longo caminho até a Pavuna. Na rua, uma lembrança vinha de forma expressa: precisava me preparar para as quase duas horas de percurso até o Jardim Boiúna, sub-bairro da Taquara que, por sua vez, é sub-bairro de Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade. Por mais que os nomes de Tintoretto, Donatello, Fragonard, Pissarro, Taunay, Reynolds e Lawrence fossem íntimos dos meus estudos acadêmicos, eu nunca seria — e nunca serei — sobrinho-neto do Barão de Tefé (como Henrique Dodsworth) ou ex-proprietário de terras da região da Lagoa (como Rodrigo de Freitas). Entre a Rua dos Biólogos e as páginas de The story of art, de Gombrich, há uma distância imensurável.

 

 Após quase duas décadas da minha primeira visita à casa e na sequência de muitas mudanças existenciais, geográficas, profissionais e econômicas, surge um convite para se pensar um projeto curatorial neste local. Após alguma reflexão, parecia urgente dar espaço a artistas em crescente institucionalização; imaginamos que essa casa poderia ser um espaço de experimentação, aposta e erro perante o olhar público. Junto desse fato, em uma chave autoanalítica, por que não convidar outras pessoas que também foram criadas em contextos periféricos? E se esta exposição fosse um ponto de encontro daqueles que não lucraram com os bens materiais dos barões e viscondes que compuseram a história colonial do nosso país, mas que herdaram e articulam de maneiras diferentes a sabedoria, a memória e o fazer de uma classe trabalhadora que muito pingou (e ainda pinga) dentro da condução? Tendo em mente a amplitude da casa — que engloba sua fachada e jardim —, pareceu-nos boa ideia ocupar todos os cômodos curados por Eva Klabin e exercitar a recodificação de suas narrativas. Seja pelo seu lugar social — uma sala de estar não possui a mesma intimidade de um quarto de dormir —, ou pelas coleções e ambientes criados — da Sala Chinesa ao boudoir –, diversos são os decibéis de seus ecos perante nossos corpos. Advindos da classe trabalhadora — de bairros como Anchieta, Campo Grande, Realengo, Santíssimo, Seropédica, Vila Valqueire ou das periferias de cidades como Anápolis, Belo Horizonte, Cabo Frio, Porto Alegre, Salvador e Santo Antônio de Jesus —, os artistas aqui reunidos abordam em suas pesquisas as noções de domesticidade, tempo, ficção, educação, privilégio e fisicalidade. O conjunto de suas obras aponta para direções contrastantes, mas dialógicas. Enquanto alguns artistas dialogam com a carga cultural desses cômodos, outros propõem relações mais formalistas e/ou conversas com a coleção de Eva Klabin. Se, durante séculos, diversos artistas brasileiros oriundos da aristocracia tiveram a liberdade de experimentar da forma que quiseram como artistas visuais, por que esperar algo diferente daqueles criadores que vêm da periferia? Longe dos essencialismos identitários, adoraríamos mais confundir do que entregar algo ilustrativo; é importante que o conjunto desses doze artistas se sobreponha e se contradiga narrativamente.

 

Como dar título a essa experiência de ocupação da Casa Museu Eva Klabin? Talvez estimulado pela morte de Rita Lee, este verso escrito por Caetano Veloso e Gilberto Gil, em 1968, e incluído no primeiro álbum dos Mutantes me veio como um glitch: “essas pessoas na sala de jantar”. Canção lançada em plena ditadura militar e provocativa na sua abordagem em torno da “família tradicional brasileira”, “Panis et circenses” parecia perfeita — a frase denota uma alteridade: se há “essas” pessoas na sala de jantar é sinal de que existe ao menos um sujeito que as observa. Dado o contexto histórico, essa alteridade pode ser rapidamente associada a uma diferença geracional ou à polarização entre esquerda e direita brasileiras. Como exercício de ampliação dessas palavras, talvez possamos olhar para elas e pensar em outras camadas de leitura socioeconômicas, educacionais e raciais. E se enxergássemos nas bocas das empregadas domésticas, trabalhadores informais e operários — mães e pais de muitos dos artistas aqui reunidos — essa frase? E se “essas pessoas na sala de jantar” se referisse aos corpos subalternizados que, em uma inédita guinada discursiva e institucional — assim como mercadológica e midiática —, estão sob os holofotes dos centros culturais, feiras, galerias e museus de artes visuais no Brasil e no mundo? Caros leitores, não se assustem; podem continuar a usar os seus smartphones ou a tilintar suas colheres de sopa. Viemos apenas mostrar por alguns meses que quando se dá espaço para pessoas que nunca tiveram o privilégio de ter uma sala de jantar, o chá das cinco pode ter um sabor diferente. to make a type specimen book.


Raphael Fonseca

[Fotos Mario Grisolli]

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