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Essa cidade sempre maravilhosa

Curadoria de Theo Monteiro

Galeria Nara Roesler
Rio de Janeiro, 2024.

Meu nome é Ismael Silva. Nasci em Jurujuba, em Niterói, e fui para o Rio, essa cidade sempre maravilhosa, aos três anos de idade. Fundei a primeira escola de samba no bairro do Estácio de Sá. E pelo tempo venho fazendo minha música. Eu espero que vocês gostem.

—Ismael Silva, em Antonico.


Os versos acima constituem uma espécie de “apresentação” que o antológico Ismael Silva (1905–1978) faz de si mesmo antes de entoar o Antonico, samba de sua autoria e de grande sucesso. Silva não foi apenas de um sambista do mais alto calibre, mas também (e principalmente) um dos precursores do carnaval carioca tal como o conhecemos. Ao lado de outros sambistas do bairro do Estácio de Sá, fundou a agremiação carnavalesca Deixa Falar, em 1928, que veio a se tornar a primeira escola de samba de um dos carnavais mais famosos do planeta. Não deixa de ser curioso que, mesmo sendo uma figura de suma importância para a consolidação da identidade do Rio de Janeiro, se apresente nesta introdução como um forasteiro. Não só isso: em sua fala, se percebe um tom de algo irônico. Clichês e expectativas como: “essa cidade sempre maravilhosa” e “eu espero que vocês gostem” estão embebidos em uma certa galhofa, característica de quem conhece as coisas por dentro e, ciente de sua complexidade, entende que certos lugares comuns não passam de frases de efeito vazias. Ao mesmo tempo em que adjetiva o Rio como: “essa cidade sempre maravilhosa”, pode-se depreender, pelo tom usado, que a coisa não é tão simples assim. Existem mais coisas entre a Praia de Jurujuba e o Cristo Redentor do que sonha a nossa vã filosofia.


Esta exposição não tem como objetivo desconstruir ou destruir elementos referentes à identidade da antiga capital do Brasil. Isso seria uma tarefa pretensiosa e potencialmente desrespeitosa. A proposta aqui é justamente a de mergulhar na vertiginosa complexidade do Rio de Janeiro contemporâneo, cidade que desempenha papel decisivo na formação cultural e política do país. E esse mergulho se dá, justamente, através da produção de doze artistas contemporâneos. Boa parte deles cariocas. Quase todos brasileiros. As exceções acabam por nos mostrar que o alcance das situações e questões vividas pelo Rio de Janeiro já transcende os limites do município, se fazendo presente também em outras regiões do Brasil e alimentando o imaginário estrangeiro.


A exposição se divide em duas partes, distribuídas entre os dois pisos da galeria. Os trabalhos do piso inferior são mais voltados para elementos presentes no cotidiano da cidade. Caso, por exemplo, de sua paisagem idílica, reconhecida em todo o mundo e uma das principais responsáveis pela fama de “maravilhosa” que a mesma carrega. Aqui ela aparece em um trabalho da série Dinheiro Vivo, de Vik Muniz, em releitura que o mesmo faz do artista oitocentista alemão Johann Moritz Rugendas. Enquanto o pintor germanico transforma a faixa costeira da cidade em um edênico paraíso perdido, Muniz, por meio de cédulas picadas de Real, lhe confere um colorido exagerado e artificial.


Contrariando a lógica de parte das grandes cidades, nas quais os subúrbios são bairros longínquos, no Rio, por força de seu peculiar relevo, eles são uma realidade próxima, frequentemente se misturando com áreas mais gentrificadas. Desse contexto, surgem interessantes desdobramentos, como o saber construtivo da arquitetura vernacular, que Ana Hortides explora por meio de pisos de caquinhos de cerâmicas e paredes de concreto coloridas com pó xadrez. Cores e texturas mais ásperas, mas nem por isso menos cheias de vida. Essa mesma aspereza cromática também aparece nos cenários das pinturas de Priscila Rooxo, artista da baixada fluminense. Os espaços que constrói em suas composições, de grandes áreas de cor (nas quais predominam os acinzentados), são povoados por homens e mulheres (as segundas são maioria) envoltos tanto em atividades cotidianas quanto em momentos de lazer.


Se os cenários são aparentemente áridos, o mesmo não se pode dizer daqueles que lá habitam, em especial porque a artista detalha bastante suas roupas, cabelos, unhas, adereços e festividades, que são representados de forma a celebrar orgulhosamente toda uma pujante cultura vigente para além da zona sul da cidade. Se em Rooxo e Hortides existe certa economia visual, no trabalho de Celo Moreira a cacofonia urbana carioca transborda de forma asfixiante. Latas de cervejas, letreiros do comércio popular, personagens de desenhos animados, mascotes publicitários, templos evangélicos e panfletos de políticos duvidosos compõe aquilo que seria o espírito pop carioca do Século XXI, com excesso visual barroquizante e sarcasmo cético.


Contrapondo-se a essa profusão de signos, estão os gradis metálicos de Raul Mourão empoleirados sobre garrafas, que se alternam entre um cinetismo gracioso e uma fantasmagoria, sobretudo por fazerem menção à violência que assola as cidades, levando os edifícios a se cercarem de toda a sorte de anteparos, como cercas elétricas, arames e gradeados. No vídeo Bang-Bang, essas estruturas, frágeis e instáveis, são alvejadas por tiros, fazendo-nos lembrar que a desigualdade social, elemento indisfarçável na cidade e no país, cobra seu preço. Essa situação, dramática, não vem de hoje, como nos mostra Jaime Lauriano em um inédito trabalho da série Pedras Portuguesas. Essas pedras são um cartão postal da cidade sempre maravilhosa, amplamente empregadas no calçamento de suas famosas praias. Nesse trabalho, Lauriano grava sobre as mesmas a palavra “Valongo”, remetendo ao antigo porto escravista de mesmo nome que existiu na cidade entre os Séculos XVIII e XIX, cujo qual era uma das maiores portas de entrada de pessoas traficadas da África que já existiu na América. Símbolo de uma das maiores feridas da História nacional (e da cidade), o mesmo acaba nos apontando que as raízes da assombrosa desigualdade que nos esmaga tem raízes remotas.


Arthur Chaves, por seu turno, lida com materiais descartados e esquecidos, em especial tecidos, mas também plásticos e outros detritos que se acumulam pelas ruas da cidade. Em sua mão, por meio da costura, são recombinados em estruturas misteriosas e elegantes, transitando entre majestosas fantasias, seres monstruosos ou simplesmente outras possibilidades pictóricas. O que se sabe é que esses complexos arranjos, que emergem dos detritos da cidade, evocam toda a sorte de fantasias, desafiando a lógica do dia a dia e falam de algo maior, prenunciando aquilo que será visto no piso superior.


Subindo as escadas, o cotidiano e sua materialidade ficam em segundo plano, e os assuntos do espírito e da alma vêm à tona. Em uma cidade onde a vida se faz veemente, o transe, o culto e o sonho desempenham um papel crucial, são uma forma de extravasar e sobreviver. A começar pelo vídeo Maracanã, de Marcos Chaves, que mostra o famoso estádio de mesmo nome lotado, porém com todas as luzes apagadas, iluminado somente pelas lanternas dos celulares do público presente. Ainda que associado ao lazer cotidiano, o referido estádio é carregado de um forte simbolismo que só a lógica e a sociologia não dão conta de explicar. O mesmo pode-se dizer do retrato que Elian Almeida faz do já referido Ismael Silva, criador da primeira escola de samba. Como o futebol, o carnaval consiste em uma explosiva celebração, na qual toda a sorte de fantasias entram em cena. Aqui, Ismael Silva deixa de ser apenas um mero mortal e se torna uma espécie de figura mitológica, agora devidamente eternizado.


Os assuntos da alma, contudo, também podem levar o humano a sombrios porões. E é isso que nos apresenta André Griffo em seu Deus talvez seja meu ditador favorito. Falamos de uma cidade onde a fé, desde o período colonial, desempenha papel crucial, e ainda hoje constitui assunto de primeira importância, dado que abriga um dos maiores contingentes neopentecostais do Brasil. Um olhar menos atento pode colocar o trabalho de Griffo como algo arcaico, pré-renascentista. Contudo, pode se observar que seus anjos, santos e figuras de culto empunham armas e diversos outros elementos que dizem respeito a uma violência mais atual do que nunca. O potencial despótico da fé também aparece na poética de Yohana Oizumi, aqui presente com o trabalho Verbo, cujo título faz menção a abertura presente no primeiro capítulo do Evangelho de João. Nesse trabalho de aspecto instalativo, uma sequência de blocos de cera de abelha aparecem cravejados de tachinhas e com aberturas semelhantes a chagas abertas, de onde emana um azul oceanico muito vivo. A aparente beleza, construída por meio de um jogo de dourado com azul, acaba revelando muitas das feridas (físicas ou psicológicas) que interpretações fundamentalistas da espiritualidade podem infringir naqueles que a seguem.


Alberto Baraya, por seu turno, constrói uma pintura de sabor levemente academicista, retratando praias e lugares do Rio de Janeiro, porém colocando em destaque animais completamente exóticos e alheios a aquele cenário. O caráter quase romântico do cenário parece entrar em choque com a precisa representação dos seres ali instalados. O ideal e o científico se encontram produzindo cenas carregadas de absurdo.


Capital do Brasil entre 1763 e 1960, o Rio foi o principal cartão de visita do país em um momento no qual este se consolidava enquanto agente geopolítico. Mais que isso, foi possivelmente onde a ideia de Brasil como hoje conhecemos foi gestada (às custas, inclusive, da invisibilização de outras regiões). E, tal como o país que acabou produzindo, desafia muitas vezes a qualquer lógica pré-estabelecida. Sendo assim, diferentes poéticas podem fornecer olhares e modos de perceber uma cidade que, se não é sempre maravilhosa, é deliciosamente complexa.


Theo Monteiro

[Fotos Rafael Salim]


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