
Ana Hortides
Casa própria
Curadoria de Lucas Albuquerque
Paço Imperial, Rio de Janeiro, 2025
Para algumas pessoas, as paredes de casa têm ouvidos. As de Ana Hortides, contudo, não se contentam apenas com o membro auricular: elas criam tetas, línguas, verrugas, cicatrizes. Durante o período de incerteza do confinamento pandêmico em 2020, a artista encontrou na casa de seus avós em Vila Valqueire, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, um acervo de elementos arquitetônicos. Materiais que moldaram o gosto das classes baixa e média durante anos tornaram-se objetos de sua investigação: o piso de cera vermelha, quando não de cimento bruto, foi o primeiro a ser experimentado. Depois, os caquinhos de azulejo que cobrem fachadas e quintais chamaram a sua atenção. No ambiente familiar, Hortides descobriu um campo arqueológico capaz de fazer parecer estranho aquilo que outrora fora íntimo.
O processo de desconstrução material logo se converteu em um questionamento mais amplo, buscando dissecar os elementos que sustentam um lar. Assim, a lupa do arqueólogo cedeu lugar à planta do arquiteto em trabalhos que organizam a casa a partir de estruturas modulares, ora produzidas em escala diminuta, ora em tamanho real. Tais componentes aparecem, entretanto, desprendidos de sua função original. Distanciam-se, também, da maquete arquitetônica. A reconstrução das escadas, lajes e fachadas de Hortides observam mais a lógica de construção de uma arquitetura popular: aquele olhar técnico do pedreiro de bairro, dos trabalhadores informais, das famílias que, ao se formarem, passam a almejar uma casa, muitas vezes construída pelas próprias mãos com tijolos, reboco e suor.
Se, de um lado, a arquitetura “de estúdio” assinada por grandes nomes conserva a marca de um estilo autoral durante séculos, a mão anônima do pedreiro guarda histórias diretamente na fundação da casa, erguida para servir ao sonho da propriedade privada. É inegável, porém, que esse ofício carregue consigo um imaginário de gênero, já que, raramente, é desempenhado por mulheres. Hortides subverte essa condição ao se colocar como mestra de obras de seu próprio trabalho, quase nunca terceirizado – prática usual à produção contemporânea. Menos como uma crítica direta a tal conjuntura social do que tensionadores de forma e força, seus trabalhos carregam um índice direto com o corpo de quem mistura a massa e carrega quilos e quilos de cimento. É comum ouvir que o tamanho do ateliê de um artista condiciona a escala de sua produção. Neste sentido, o ateliê de Hortides é seu próprio corpo – que, em uma queda de braço diária, dita o esforço físico máximo para que cada obra veja a luz do dia.
Apresentada em sua extensão e variação pela primeira vez na cidade do Rio, a produção da artista propõe como experiência o indomado silêncio do doméstico. Protuberâncias feitas em cimento e ladrilhos multiplicam-se ao longo da exposição, como um tumor que cresce desordenadamente. A cera vermelha, antes limitada ao chão, ergue-se feito cortina, abandonando sua dureza para tornar-se maleável. Mesmo fachadas distantes, como os raio-que-o-parta paraenses, aparecem como primos não convidados, expandindo o espaço expositivo. A casa própria, que para alguns é um objetivo de vida inegociável, aqui revela uma face nada redentora.
Não vivemos mais um lockdown. As ruas estão aí, permitindo o ir e vir daqueles cuja ideia de passar horas em casa mostrou-se um verdadeiro horror. Para eles, caminhar por esta exposição talvez espelhe esse desconforto. Os acostumados a confrontar a estranheza, Hortides convida a escavar o que nos envolve. Sentar e observar que, além de ouvir, as paredes podem, também, falar.
Lucas Albuquerque
[Fotos Rafael Salim]




















