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Ana Hortides
Fundação

Texto de Pollyana Quintella

Casa Fiat de Cultura
Belo Horizonte, 2022.

Há quase dez anos, Ana Hortides investiga o modo como os imaginários contraditórios em torno do doméstico nos compõem. Na escala dos amuletos, brinquedos infantis e objetos afetivos, as já icônicas casinhas diminutas da artista experimentaram materialidades distintas: açúcar, vidro, porcelana, madeira, carvão. Elas nos exigiam a curva do corpo, o apequenar-se, a intimidade primordial, por vezes tratando, a nível físico, do terreno frágil da família e da solidão, relações que flertam com o vulnerável. Nos últimos anos, porém, o interesse pela casa foi ganhando contornos mais socioeconômicos. A pesquisa material voltou-se para técnicas de construção civil suburbanas (contexto de onde a artista advém), conciliando a dimensão poético-filosófica com a discussão política, algo evidente nessa sua mais recente exposição.   


Sua série Caquinhos, feita de concreto e cerâmica, menciona um léxico bastante comum na construção civil suburbana: tais lajotas de cerâmica foram amplamente utilizadas pela classe média, ao longo do século XX, no revestimento de suas casas. Era comum, no entanto, que durante os processos fabris houvesse uma parcela considerável de quebra dessas lajotas, gerando um excedente de baixo valor comercial, que foi aos poucos incorporado pelas casas mais populares. Tratava-se, portanto, de um código visual que constituía uma semântica de classe: os mais abastados ostentavam peças inteiras e aos mais pobres restavam os cacos. O que parecia, num primeiro momento, fruto da precariedade e da falta, converteu-se em estética afirmativa de uma identidade, aqui explorada pela artista. 


Talvez os caquinhos dos quais falamos, no contexto do trabalho de Ana, não sejam apenas os pedaços irregulares de cerâmica, mas cada uma dessas obras como restos e estilhaços de uma casa incompleta, deformada pela memória e pelo tempo, cuja condição de ninho só sobrevive na idealização nostálgica da infância (não à toa, no vídeo Fundação, os cacos são fruto de uma ação de violência deliberada sobre o piso, como quem busca, num misto de pedreira e arqueóloga, o murmúrio de um segredo, o cerne de uma matéria misteriosa que revele a verdade da casa). Entre as peças escultóricas, há uma coluna que nada sustenta, um capacho – cuja função é a de limpar os pés para evitar que a sujeira da rua entre para dentro de casa – constituído pela matéria do próprio chão (nublando, portanto, os limites entre dentro e fora) e alguns retratos ou porta-retratos que nos levam a aproximar corpo e arquitetura, compreendendo a produção de identidade a partir de uma experiência de enraizamento no mundo. 


Outro exemplo dedicado a esmiuçar tal léxico são as obras Vermelhão e Cimento Queimado, ambas refletindo técnicas de acabamento econômico bastante utilizadas em casas brasileiras, ao dispensarem a aplicação de piso (no caso do vermelhão, convencionou-se utilizar pó xadrez, corante acessível, para atingir a tonalidade expressiva). Ao transpô-los para telas, a artista não apenas enfatiza a dimensão pictórica desses procedimentos (a nível de pesquisa de cor, mas também da gestualidade presente no cimento queimado), como também dialoga com o aspecto “construtivo” de certos capítulos da História da Arte, acenando para a linguagem abstrata, aqui dotada de sentidos políticos. Noutras vezes, é a presença da palavra que vem dotar os elementos da casa de contorno afrontoso. Coragem e Futuro, da série Brasil País de Todos, se apropria de objetos a princípio destituídos de qualquer intencionalidade para afirmar o histórico lema da segunda onda do feminismo do final dos anos 1960: “o pessoal é político”, trazendo aquilo que há de alheio e arredio para os espaços da comodidade.


O conjunto de obras aqui exposto busca fundir as linhas de uma paisagem geopolítica e os contornos íntimos da casa; a gramática visual do subúrbio carioca e a dimensão afetiva incontornável de quem está se alimentando das próprias memórias como matéria-prima de trabalho. Falamos, portanto, de um trânsito entre o individual e o coletivo, entre identidade de classe e singularidade pessoal. “O mundo bate do outro lado da minha porta”, diria Pierre Albert-Birot. Trata-se de uma casa que se transforma, pouco a pouco, em condição viva e movente, em constante renegociação. 


Pollyana Quintella

[Fotos Leo Lara e Daniel Pinho]

Acesse o catálogo aqui.


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