Ana Hortides
Dona
Curadoria de Ludimilla Fonseca
Arte Fasam Galeria e Galpão Cru
São Paulo, 2023.
Sejam bem-vindos e fiquem à vontade. Só cuidado com os azulejos: eles estão quebrados. Esta é a primeira individual de Ana Hortides em São Paulo. Sua ampla pesquisa em torno da potência política e poética dos espaços domésticos se expande a partir de uma prática mais focada nos materiais como meios de explorações formais. Assim, o caráter familiar de sua produção passa a provocar certo estranhamento.
A artista dá acabamentos mais maleáveis para materiais “endurecidos”: as formas têm uma qualidade escultural e íntima, adquirindo efeitos inesperadamente contemporâneos. Como se, durante a produção, as coisas ficassem estranhas, desproporcionais e assombrosamente vivas. Em sua forma final, as obras se tornam habitantes de uma casa vazia. São estranhos, mas não intrusos.
A exposição atesta uma contínua capacidade que Hortides tem de surpreender: apesar de trabalhar com um repertório de matérias-primas similares e recorrentes, sobressaem do seu trabalho o novo e a espontaneidade. Produzidos a partir de ambiguidades, os trabalhos questionam a função e a natureza dos materiais, enquanto revelam o desejo deliberado da artista de nos fazer sentir saudades.
Ela apresenta o conjunto de esculturas “Outsiders”, desenvolvidas com cimento e azulejos. Parte integrante desta série, as obras “O coro” são feitas com peças únicas e coloridas que Hortides garimpa e compra em armazéns antigos. No “Cemitério dos azulejos”, é necessário selecionar apenas aquelas unidades que fazem sentido no todo: um “grande coro inaudível”, que entoa o mesmo murmurinho nostálgico. São sobreviventes de casas mortas.
A exposição coincide com a mudança da artista do Rio de Janeiro para São Paulo. Em busca de casa e ateliê na capital paulista, ela se vê entrando e saindo de interiores destroçados. Era isso ou “visitar o decorado”. De certo modo, Hortides também é uma outsider.
As telas inéditas da série “Ventanas” são produzidas com cortinas sobre chassi. Após uma longa busca pelo tecido ideal, a artista produziu cada uma das padronagens. Essas peças não poderiam ser compradas, porque, simplesmente, não existem mais no mercado. Simultaneamente, as obras jogam com a noção histórica das “pinturas como janelas para o mundo” e nos lembram das cortinas como “esconderijos”: ao ficar atrás delas, nossos corpos infantis perdiam seus relevos humanos, adquirindo os contornos do tecido. E, assim como o verso das pinturas, nos tornávamos invisíveis.
As obras são nomeadas a partir das mulheres que eram donas dessas cortinas. “Lenir”, por exemplo, é o nome da avó de Hortides e também da maior obra da exposição: uma cortina de quase oito metros de largura, suspensa por trilhos de alumínio. O corte, acabamento e gomos perfeitos são resultados do trabalho de Sueli, que sustentou sua família trabalhando como costureira (atividade que desenvolve até hoje). As expressões contemporâneas “dona e proprietária” e “ela faz o corre dela” vão além dos memes: são afirmações pessoais e políticas.
A exposição apresenta ainda o vídeo “Cômodo”, para o qual a artista desenvolveu duas pequenas máquinas eletrônicas, cujo objetivo é despertar a casa. Cada uma delas simula batidas de coração e a respiração, evidenciando a existência autónoma dos objetos caseiros. Vemos um lar envelhecido, mas que ainda lateja por baixo das superfícies. Outra característica importante é a trilha sonora. Nas casas onde crescemos, ouvíamos um cantarolar baixinho, mas onipresente: enquanto mães e avós passavam roupas e lavavam louças, cantavam para si mesmas, já que os aposentos são plateias silenciosas. Aqui, escutamos a própria Dona Lenir.
Neste espaço expositivo, não houve tentativa de forjar um ambiente de galeria. As características arquitetônicas, com destaque para o vidro e o cimento, são absorvidas, criando a ficção de um espaço em que nada funciona, exceto pela luz natural que entra através das janelas. Hortides se apropria desse contexto desenvolvendo um trabalho site-specific. Construído com azulejos, esculturas e uma samambaia, “Daydreamer” explicita que qualquer uso dado a qualquer lugar é sempre temporário. Passado e futuro ficam justapostos nesta instalação que também vai desaparecer.
“Dona” sugere que a gente se retire de nossas lembranças e imagine os espaços afetivos do passado sem a nossa presença. Mi casa, su casa. Temos a tendência de achar que nada acontece sem a interferência humana. No entanto, as coisas que nos cercam também envelhecem e, ao serem abandonadas ou descartadas, descobrem como viver sozinhas.
Ludimilla Fonseca
[Fotos Estúdio em obra]
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